Crônica e poesia aos desinteressados

Crônica:

Os olhos - semiabertos - destacavam o efeito da rotina. Traços na testa anunciavam as variáveis. A respiração - o ar pesado - evidenciava a paciência, mas não a calmaria (inexistente) do cotidiano. A boca - para ser mais específico - os lábios, sequíssimos; escassos em volume, cor e natureza, gritavam a todos que se atentavam que a sede, faz muito, não mais existia.
Isso para não comentar das mãos. Enrugadas, com curvas sem igual, calos sofridos mas que certamente não causavam qualquer dor. A dor perde qualidade e significado quando é hábito, quando é condição.
O corpo não conhecia o que, ao menos aqui na esfera poética, se chama de prazer. Essa palavra não deve existir no dicionário daquelas marcas. Pelo uniforme, deve ter um cargo qualquer, em empresa terceirizada, talvez de serviço de limpeza, considerando as botas usadas.
Ela desce do ônibus, passos vagarosos, muito por conta da idade. "Pessoa miúda", penso.
Minutos depois encaro, sem a mínima pretensão ou objetivo, outras pessoas. Fico apreensivo. Os olhos daquela senhora ainda estão no transporte coletivo. Encaro a todos, inclusive o chofer. Todos tem os mesmos olhos.
As mãos, as testas, a respiração; pareciam todos iguais. Como um único organismo sonolento, se é que podemos denominar de organismo, porque isso pressupõe que se tenha vida. Ali não vejo vida.
Algo que me conforta. Miro a rua, reconhecível, finalmente. Meu ponto é na parada seguinte. Ali no solo, no chão da calçada, sinto a vida do cimento esquentar meus passos. Sinto o Sol, vivo, a queimar-me. Sinto as nuvens, chorosas.


Poesia:

Sinto muito por pouco sentir perante os demais.
Sinto, quando muitos ao meu redor, sinto solidão.
Sinto, quando nos olhos alheios, a expectativa que do outro lado, o ouvinte seja um humano.
Sinto, vago e vagarosamente, um desespero crescente
Sinto o caos beijando-me a testa, abraçando-me
Sinto a ordem se encontrar nos meus comportamentos
Sinto-me inconformado com os zumbis em seus aparelhos
Sinto-me.
Sento-me.
Santo-me.
Diabo-me.
Humano-me.

E tomo um café para nada mais sentir.
Faço-me café. Nada mais.

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