Crônica da Semana #03: Família tradicional brasileira




“Você sabe muito bem a puta que aquela menina é”. Foi com essas palavras que Angélica se revoltava com Douglas no entardecer de um domingo. Na rua tocava samba, patrocinado pelo vizinho dela que estacionara o carro de som (um Fiat antigo) na sua garagem e estava sentado numa cadeira de praia enquanto escutava com prazer amistoso os ruídos da casa ao lado, tomando sua Skol habitual enquanto o mundo ruía em caos.
Douglas retrucou de modo manso, para evitar desgaste argumentativo – “amor, foi só um caso, esquece isso, você sabe que eu te amo”. Quanta inocência, Douglas. Apelar para o amor em meio a uma discussão é inútil e pode soar falso. Angélica então, como se estivesse realizando um pronunciamento em televisão pública, endireitou o corpo e declamou o poema. “Você é um filho da puta, Douglas, é isso o que você é. Você acha que sou boba? Eu vi você chupando ela. Você fez isso com prazer. Eu vi tudo, tudo! O jeito que você olhava pra ela, o modo como você se manteve inteiro na cama. Aquela mulher quer arruinar nossa relação e é isso que você me diz? Que me ama? E pra ela, você diz o que?”.
Como quem faz uma pergunta retórica e espera a resposta apenas para abafar o som do outro, ela respirou profundamente e ia continuar quando foi interrompida pelo “mas amor”, de Douglas. “Mas amor é o cacete!”, Angélica gritou. “Vai lá com aquela puta, ela não é gostosona? Ela não é melhor do que eu? Vai lá!”. Douglas silenciou, mas em seu pensamento a hipótese dada nunca esteve descartada. Angélica continuou, “diz praquela vadia que se eu pegar você de rolo com ela novamente, eu vou matar ela e enterra ela no nosso quintal pra você lembrar disso quando for atrás de outro rabo de saia. Você me entendeu?”. Douglas não tinha entendido absolutamente nada, mas concordou.
“Eu juro, juro por Deus que se amanhã ou depois eu vejo essa ordinária na rua, no ônibus ou em qualquer outro lugar, eu vou rasgar a cara dela com a minha unha, vou rasgar”. Angélica por fim, se colocando aos prantos, desistiu de algo dizer. Sentou na cama e apenas escutei a voz de Douglas dizendo que “vem cá, esquece ela, tá só a gente, vem cá”.
Alguns minutos de silêncio sucederam a fala de Douglas. Enquanto digito esse texto, escuto gemidos e também algumas frases soltas do casal, como por exemplo, “olha pra mim”, “com ela você fode assim?”, e outras tais como, “liga pra ela e fala que você tá comigo”. De Douglas, apenas uma frase é proferida espaçadamente com falso remorso, “eu te amo".
Assim, daqui nove meses, nascerá Corenzo da Silva que, como uma amiga me disse, será um dos nomes mais dados para crianças que nascerem em período de quarentena, significando “Enzos que nasceram pós-pandemia (ou durante) do coronavírus”. Se for menina, Douglas, caso não tenha desaparecido até lá, como bom representante da família tradicional brasileira, dará o nome de Clara da Quina Silva.

Comentários

Postagens mais visitadas