Crônica da Semana #04: Holly, Holly shit!


 

Foi após onze toques do alarme programado para as 06h00 que Holly levantou. O som do alarme era, a dois meses atrás, sua música favorita. Era. Após 59 dias despertando ao som de Hey Jude, dos Beatles, sua consciência intencionalmente invertia as sugestões da letra cantada por Lennon. Holly, sempre que se levanta, desperta somente após o forte café que toma as 06h14. Não gosta de falar, de pensar, de se sentir viva, de ver cores, de respirar, de qualquer coisa, na verdade, antes de tomar seu marcante café. O primeiro item Holly não gosta mesmo, pouco dependendo da hora ou do momento. A rotina se repetia com consistência. Era o alarme, o café, a higiene pessoal, cinco tapas na cara e um banho gelado para dar um choque de sinceridade em seu corpo adormecido. Após, vestia a primeira roupa que via, mesmo que a sociedade julgasse o péssimo critério para suas vestes. E então, Holly se locomovia ao trabalho. Com seus pés, por suposto.

Com certa frequência, quando estava no meio de algum álbum que escutava ao caminho de sua tortura, o inconveniente Marcu aparecia. Tudo começou quando o cidadão foi admitido na empresa dois anos atrás. Gostava de impressionar a tudo e a todos com sua felicidade entediante. Era sorriso para os quatro ventos. E, claro, como um idiota feliz, Marcu gostava de agradar aos demais e foi numa dessas emboscadas que Holly entrou. Em uma manhã que apenas chuviscava, Holly se pôs a caminhar para o infortúnio (alguns chamam de “emprego). O desprazer naquele dia já era absoluto e, foi com a desgraça no olhar que Holly notou que a chuva apertava e os próximos cinco quilômetros seriam impossíveis de serem completados com seus pés. Porém, após cinco segundos de reflexão, seu pensamento principal era o ditado. “Está na chuva, é para se molhar”. E assim seguiu. Foi quando começou o lançamento de granizo por alguma divindade que Marcu apareceu com seu fusca rebaixado de cor laranja fluorescente que, mesmo num furacão, se destacaria.

“Holly, Holly!!!”, gritou Marcu. Fingindo demência, Holly continuou sua alagada jornada sem virar o rosto para a rua. “Holly, sou eu, o Marcu, Holly!”. Apenas no momento em que Marcu buzinou foi que Holly desistira de ignora-lo. Também havia o fato de Holly já não conseguir caminhar em meio ao mundaréu de água que abasteceria o interior do Estado durante um ano. “Vem, tá chovendo muito”, proferiu Marcu para Holly que apenas bateu a porta do carro e pensou em agradecer a notícia sobre a chuva, desistindo após o “uhum” público que resumia o pensamento. Aqueles foram minutos de tortura. Marcu falava com voracidade. Holly ouvia uma frase e outra, apenas acenando com a cabeça.

Depois do episódio, Marcu se sentiu no direito de iniciar uma amizade unilateral com Holly e, mesmo com as caras e bocas e ignoradas que recebia, decidiu que Holly era sua principal companhia no ambiente de trabalho e, por vezes, fora dele.

Então era com certa contradição nos passos e desviando inúmeras vezes sua rota com atalhos que descobria ao sair alguns minutos mais cedo de casa que Holly evitava estar visível em qualquer calçada que Marcu passasse. Ao fim do expediente, também utilizava toda sua criatividade para recusar as caronas oferecidas por Marcu. Holly sabia que poderia muito bem dizer apenas um “não” mas não conseguia deixar de justificar suas frases. Foi por isso que passou a se trancar na toalete do setor sempre que o fim do expediente chegava, ficando por lá por mais de trinta minutos, pois Marcu tinha o hábito de se despedir de todos e demorar a ir embora.

Bem, foi após onze toques do alarme programado para as 06h00 que Holly levantou. O som do alarme era, a cinco meses atrás, sua música favorita. Mas, esse parágrafo não se trata de repetição. Após alguns meses em que seu estado de vida passou de pura melancolia para moderada depressão e desesperança, Holly pudera sorrir de maneira privada novamente. Marcu, tendo incomodado uma pessoa do departamento de Recursos Humanos por ter se apresentado extremamente feliz em uma segunda-feira, acabava de receber sua demissão por justa causa. E no dia seguinte, seu armário já estava vazio. Marcu não se abateu, pois já tinha indicação de um novo trabalho e foi com otimismo que disse adeus para seus colegas de profissão. Holly, finalmente, experimentava de maneira reservada, o prazer que há muito não sentia.

Contudo, leitores e leitoras, a vida é debochada; a vida é um chiste; a vida é uma festa de aniversário surpresa em dia diferente ao do nascimento. Não demorou muito para Holly ter fobia de sair de seu apartamento. Marcu havia sido contratado. Era o novo porteiro do prédio onde Holly morava. Em período integral. Das 18h às 06h e, feliz e caridoso que era, esperava Holly para dar uma carona ao trabalho, pois era rota para sua casa. Holly, Holly.

Comentários

  1. Bom, muito bom.
    Permita-me apenas uma pequena correção, que em nada, claro, depõe contra a qualidade do texto. Sempre que nos referimos a tempo passado, já decorrido, "há dois meses", "há cinco meses", o "a" é com "h"; para tempo futuro, aí sim é só o "a", "daqui a dois meses" etc.

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    1. Achei que ninguém notaria isso (risos). O texto está propositalmente errado em questões temporais (vide o misto de passado, presente e futuro nos parágrafos), para dar um tom de repetição, de um passado que se repete e, por isso, é presente e futuro. Há outro erro proposital quanto ao gênero de Holly.
      Ainda assim, grato pela orientação (na verdade, escrevo tudo pelo Word, o que não me permite errar na gramática, ainda que eu erre. Mas tenho sempre a desculpa de que o idioma é uma língua viva).

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