Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Parte I)






Me chamem de Sombra. Evitarei maiores apresentações, as quais julgo supérfluas no momento. Um dia nos conheceremos. Escrevo essa carta em memória da Senhorita Valentina Domênia, célebre dama de tempos antigos. Não os seus avós, mas os avós de seus avós certamente saberiam descrever as minúcias prestigiáveis de Valentina. A intimidade e o tempo me permitem que eu a chame apenas de Tina. Contudo, como declaro publicamente alguns detalhes de sua biografia, conservarei nome e sobrenome da amada Valentina Domênia. Ela que, filha do tenebroso e apavorante Dom Miguel de Domênia e da abominada Ximena de Domênia, viveu apenas 23 anos. Não é de hoje que é sabido que a idade de uma pessoa não exerce correlação com o carpe diem quam minimum credula postero e, solta que era, eu me demoraria mais páginas que uma enciclopédia para relatar aos vossos olhos as inúmeras e incalculáveis experiências da mulher que muitos apelidavam de La Seductora.



À primeira vista a alcunha engana a qualquer um. Valentina não seduzia, a princípio, a ninguém. Eram os outros que viam nela imagem e semelhança de Vênus. Porém, devo assumir que seria impossível ignorar a face dela e sua destreza em resolver os problemas mais graves com tamanha simplicidade e rosto enrubescido. A delicadeza em seus gestos e o tom acalentador de sua voz, atraia os mais perversos sorrisos de canto de boca, de homens e mulheres que tinham diante de si o gozo reservado. Aos leitores menos afeitos, devo avisar que, já naquela época, as mulheres se entreolhavam com calor e desejo. E os homens, o mesmo. Valentina Domênia, apesar disso, antes do instinto e da sede por pecado e carne, tinha a Dom Miguel como pai, criatura de sangue frio e de pouca articulação verbal. Em sua fisionomia, ao menos oito rugas e cinco linhas na franzida testa, davam o tom do pavor com que abordava seus semelhantes.



A Sra. Ximena, por sua vez, era execrada nos arredores. Se não fosse a ciência que tenho de sua criação, haveria de julgá-la como seus conterrâneos fizeram dia após dia. Ela era a última das sete filhas que a ainda mais desgraçada Leona pariu. Logo ao nascer, seu apavorante choro, quase lhe custou a vida. Foram três dias seguidos de pranto. A bestial criança tinha o grito na voz análogo a um urutau nos mais macambúzios anoiteceres. Seu pai, de nome desconhecido, recusou-a e exigiu insistentemente que Leona asfixiasse a indefesa cria, para que calasse a desafinada sonoridade que recaia aos ouvidos das famintas irmãs e dos toscos pais. Leona se recusou. Envolto em cólera e desespero, o marido de Leona se precipitou a atear fogo na criança após passar nela quase todo o óleo que tinha em seu estoque. Antes que isso ocorresse, contudo, Leona acertou ao homem com um machado.



Tudo isso se passou na frente de todas as demais filhas do casal. A morte do cônjuge foi o acontecimento mais brando que adveio naquela família nos anos consequentes. Duas filhas morreram de fome no ano posterior, outras duas se suicidaram antes que os vermes pudessem devora-las em vida, outra foi espancada e estrangulada pelo marido aos 15 anos e a restante até hoje tem seu paradeiro incerto. Quanto a Leona, dois rumores são narrados aos ventos. A primeira história que se escuta é a de que se enforcou numa noite silenciosa. A segunda talvez seja uma invenção dos boatos: Leona, para que não deixasse a família morrer de fome, assassinou uma de suas filhas para alimentar as demais e, em seguida, fugiu da cidade e se jogou de uma ponte. É verdade que recentemente encontraram a um corpo já decomposto nas margens do Rio Nevonte e que, essa tragédia também explicaria o paradeiro da irmã de Ximena...


(Parte II disponível no dia 15/06)

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