Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Penúltima Parte)
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Na manhã do dia seguinte, alguns trabalhadores do campo estranharam a ausência absoluta de Dom Miguel no campo. Valentina lá estava, serena e com um ar de contentamento, o que lhe originava ainda mais beleza e atraia os olhares de todos. O primeiro cavalheiro a se aproximar, aproveitando a lacuna da presença de Miguel, foi Hernandes. Não tomarei muitas palavras para descreve-lo. Era magrelo, baixo e tinha cara de fome, porém, tinha uma força descomunal e se destacava em todas as colheitas e plantações. Incessantemente, tentava agradar a Valentina que apenas sorria e agradecia as cortesias do rapaz. Outras e outros tantos repudiavam com o olhar a insistência dele, mas todos gostariam de proceder de igual modo. A ninguém acudiu perguntar se algo havia passado com o pai dela, julgo que os desejos da carne e do amor estavam apetecidos e havia uma consciência coletiva de desejo, tornando insignificante o questionamento sobre Miguel. E assim foi, durante todo o dia de trabalho. No deitar do Sol, quando os olhares já se resguardavam e a noite tomava forma, Valentina se dirigiu até Hernandes. Foi com a voz do pecado e com o sussurro de quem pede o discreto que disse a ele para que a encontrasse na árvore ao lado da casa dela às sete da noite. Hernandes parecia carregar o deleite na face ao ouvir aquelas palavras e, tendo percebido as entrelinhas, manteve o silêncio entre os dentes.
Com muita elegância, Hernandes se dirigiu até o local combinado com Valentina e foi com extrema satisfação que a viu ali, esplêndida como o nascer do Sol. Valentina usava um vestido vermelho e tinha o cabelo todo trabalhado em tranças. O vestido, caso ela estivesse em um baile de gala, seria de longe o mais majestoso e ornado. Hernandes, mesmo que ainda estivesse se aproximando, podia ver os detalhes de um vermelho intenso, cheio de pérolas e minucias. Pensou que ela realmente deveria ter se enamorado dele, pois vinda de família pobre, aquele seria o traje mais elegante que ela teria disponível. Ela deu alguns poucos passos ao encontro de Hernandes e ambos sorriram. Preso ao olhar fixo dela, olhar que devora, conseguiu apenas fazer um tímido aceno. Foi com absoluta surpresa que recebeu um beijo de Valentina, não esperando qualquer inclinação dela ao imediatismo e, ainda mais tenso ficou quando ela o convidou para entrar na casa, dizendo que não se preocupasse com os severos pais dela, pois dormiam em sono pesado.
Hernandes sentiu certo pavor ao pensar que Dom Miguel poderia acordar e ver que um outro homem estivesse em sua residência mas, um único olhar de Valentina removeu qualquer dose de insegurança do rapaz. A quem quer que esteja lendo, peço que não se anime com a aventura libertina que Valentina e Hernandes iniciariam e que não duraria mais do que poucos minutos. Valentina levou o jovem apaixonado para o seu aposento. A travessia até o cômodo se deu no escuro e Hernandes não pode ver nada de estranho no local. No quarto, Valentina se despia vagarosamente e encantava-o com movimentos sedutores.
A concentração de Hernandes era a de um escultor e o coração do jovem estivera a ponto de mata-lo quando ambos se entregaram para a irrestrita nudez e para o deleite. Contudo, as respirações ofegantes e o sangue vívido foi que atraiu a coisa para o cômodo e seu deslocamento em direção ao quarto de Valentina foi instantâneo. O tremor no local trouxera Hernandes de volta a sua consciência. Foi com desilusão que viu o rosto de Valentina iluminado pelo luar. Não a mim, mas aos mortais, o semblante de La Seductora causaria a mais indescritível reação. Horrorizado, percebeu que aquilo era um pesadelo e que Valentina carregava a face da morte. E que cheiro insuportável pairava sobre o ar? As reflexões e demais pensamentos de Hernandes cessaram quando aquilo emergiu da terra. Faminta, a criatura soltou parte de sua gosma sobre o rapaz que fora devorado ainda em vida por aquilo. Seus tentáculos e garras pareciam se unir enquanto se nutria do banquete provido por Valentina. A dama de vermelho gargalhava enquanto acariciava a coisa que emitia alguns barulhos que somente os seres mais apavorantes das profundezas do oceano poderiam imitar.
No dia seguinte, muitos notaram que Hernandes não estava no campo mas ninguém cogitava dar razões para sua falta. Ele era um dos que mais trabalhava e jamais reclamava de dor ou cansaço, o que causava ótima impressão nos mais jovens que viam nele uma figura a ser seguida. Valentina naquele dia estava mais exuberante do que as palavras permitem dizer e atraia, novamente, inúmeros olhares aos quais ela singela e timidamente fingia desconhecimento. Magda, filha solteira do casal Yomi, era uma das poucas pessoas que ficavam no campo supervisionando as ações e fazia muito que sentia uma atração imensa por Valentina, ainda que nada relevara por questões de classe social. Porém, não continha o calor que seu corpo produzia ao se aproximar de Valentina e ambas chegaram a se entreolhar antes do final do expediente. O mesmo convite que Valentina proferiu a Hernandes, foi então enunciado a Magda que, se não tivesse recebido a proposta de encontro na árvore, teria ela própria sugerido algo, pois era descabida a paixão que sentia ao ouvir e ver Valentina.
Nas horas seguintes, lá estava Valentina, tomando o poder de encanto do luar com o mesmo vestido rubro, mais brilhante do que nunca esteve. Magda beijara ternamente Valentina que, repetindo o ontem como um ritual, deu início aos mesmos passos dados na relação da noite anterior com Hernandes. Evitarei a angústia ao leitor, pois seria inconveniente descrever a cena horrenda vivenciada por Magda e que culminou no seu fim. E assim os dias e as noites seguiram, Valentina parecia rejuvenescer ao passar dos anos e para muitos era como se a própria Afrodite estivesse a esculpir sua forma humana. A coisa que quase todas as noites se alimentava em seu quarto crescera ainda mais e alguns tremores de terra eram sentidos nas redondezas. Os desaparecimentos das pessoas do campo geraram boatos diversos e a comunidade começava a sentir o desespero que a fome e a escassez na plantação estavam causando.
Na noite do dia 24 de julho, dois homens foram presos na comunidade sob suspeita de assassinato daqueles que estavam desaparecidos. As provas eram poucas mas eles foram vistos matando uma mulher na vila e, por consequência, o povoado interpretou que eles estavam por trás dos sumiços. Foram enforcados em praça pública no dia seguinte e, para mistério popular, tudo o que havia no local no dia seguinte onde os corpos estavam dependurados era um enorme buraco na terra. Nada de corpos, nada de conclusões lógicas que explicassem o cenário.
Ao passo que todos pareciam ter envelhecido décadas em pouco tempo, Valentina aparentava estar no auge da sua juventude e não demonstrava medo em ir ao campo plantar e colher o que havia e, foi graças a ela que muitos também não haviam desistido, mesmo no período da maior seca já vista no local em séculos. As crianças que cresceram nessa época trabalhavam desde muito cedo para que tivessem o que comer no dia seguinte e houve uma maior taxa de nascimentos no povoado por consequência do encurtamento de gerações. As moças ainda novas engravidavam de também jovens rapazes. Com pouco alimento, não é de difícil exercício imaginar as dificuldades vividas por aqueles cidadãos. Os sentidos aflorados apenas facilitaram as ações de Valentina que, dizendo pouco e agindo discretamente, atraia para o fim da vida aqueles que se arriscavam aos encantos e graças dela. Não posso calcular quantos foram devorados por aquela bestial criatura e isso também seria desnecessário.
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