Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Parte IV)

Crédito da foto: Daniel Kwok, CC BY-NC-ND



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(...) O episódio ocorreu próximo das três da madrugada de uma noite fria e foi somente por tal desdobramento que o horror teve voz. Talvez muitos de vocês não se incomodem com os aspectos nojentos que permeiam o espectro do cosmo mas, devo alertar que há um limite para o que é aceitável. Ximena estava hibernada em sua existência desde o nascimento de sua filha e era possível notar que as moscas que costumavam repousar na carne apodrecida, preferiam o corpo da infeliz e melancólica. As duas da madrugada – se é que o horário serve de algo – envolta em pesadelos obscuros e de nenhuma compreensão, ela despertou. Com a garganta seca, foi com muito vigor com que se levantou para pegar um copo de água. Com a sede saciada, achou que era demasiadamente estranho que ainda se sentisse inebriada de uma ofegante respiração que não parecia ser dela e não tinha mais como evitar a questão quando alguns sussurros em desconhecido dialeto atravessavam seus ouvidos. A medida em que se aproximava do quarto de Valentina, a intensidade dos zumbidos ficava mais e mais alta, tornando-se mesmo insuportável. Ela abriu a porta, o que jamais faria se não fosse a insanidade momentânea, e foi então que sua face recobrou a cor e seus sentidos imediatamente saíram do transe habitual.


A coisa tinha uma forma que não permitia a resolução dos sentidos e os pormenores que coloco a seguir são uma mera síntese do que a percepção consegue lidar. Eram mais de seis tentáculos gosmentos que mantinham o que parecia ser o corpo de Valentina suspenso e quase preso ao teto. A tênue iluminação não permitia discernir com precisão se era ela ou parte da aberração que estava dependurada. O corpo da coisa parecia sair do solo e fazia movimentos cíclicos como se estivesse em uma dança macabra. Sua carcaça alongada se dividia em partes que lembravam a forma de um anel e haviam cavidades e garras em toda a estrutura. Foi possível notar ainda que na sua extremidade haviam dois órgãos que se mexiam constantemente e era dali que o cheiro de carniça em decomposição saia, bem como os apavorantes sons que a coisa emitia. Incontáveis presas gigantes se mexiam livremente para dentro e para fora do corpo. Ximena permaneceu paralisada e não teve tempo de reagir além de lançar um grito perturbador e amplo na atmosfera que chegou ao ouvido do cansado Miguel e certamente acordou uma parcela das pessoas da vila. Além da imensidão daquela coisa, que somente projetava para fora parte de seu corpo e tomava todo o cômodo, a aberração era sensível a qualquer oscilação ao redor e bastou somente um ataque para partir Ximena ao meio.


Dom Miguel não pudera conter o pânico que sentiu quando ouviu o grito de sua esposa, mas já tinha plena consciência do que havia ocorrido. Como se pudesse remover do corpo o cansaço e a velhice, correu em direção ao quarto da amada Valentina e foi com terror que viu o corpo de Ximena despedaçado ao chão. Amaldiçoou a si mesmo antes de tomar qualquer medida, pois sabia que esconder um mistério tão absurdo quanto aquele, só poderia levar a desgraças e desventuras. Homem de poucas palavras que era, gritou ferozmente contra a coisa que não via a longos anos e que, ainda que desde o nascimento era horrenda, não se aproximava nem um pouco da mitológica praga que se tornara. Miguel sabia que gritava em vão. Gritava ainda assim pois aquilo era sangue de seu sangue, e foi ele quem permitiu que aquela coisa vivesse. De início, sentiu repulsa, mas tomado pela curiosidade do desconhecido, escondeu aquilo que, desde o nascimento compartilhado com Valentina, seria seu carrasco. De fato, não lhe restara outra opção. Sabia que tentar aniquilar no nascimento a coisa levaria para o túmulo sua filha, pois notava que havia uma vinculação entre a beleza única de Valentina e a insolente coisa. Entretanto, naquele momento de desespero, nada disso sucedeu a Dom Miguel. Sua entrega na batalha foi verdadeiramente notável, mas de nada adiantara. A coisa levou apenas alguns segundos para arrancar a cabeça dele e sedenta que estava, absorveu todo o sangue que jorrava de seu corpo. O cadáver de Ximena permaneceu intocado pela coisa após o ataque, ainda que o motivo para que o ignorasse permaneça obscuro. Depois a coisa voltou para a terra, onde vivia, mas sua respiração ainda se podia sentir na casa por conta do buraco que estava aberto no quarto de Valentina.


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