Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Parte III)



Leia antes a Parte I e a Parte II (ou não)

(...) Valentina sequer conhecia a intensidade da luz solar e as cores da natureza. Tudo o que tinha visto até então eram linhas de uma tênue iluminação que chegava ao cômodo em que vivia por meio de uma porta. A figura de seu calado pai era o que sabia dos seres. Ao menos dos seres de linhagem humana. Também compreendia pouco mais que quinze ou vinte palavras que ele tinha proferido e era tudo. Bastaram alguns passos em direção ao campo para que todos reparassem na sua rara beleza. Valentina tinha o cabelo negro, a pele em um tom que eu não conseguiria descrever e seus olhos indicavam o caminho da verdade. Diferia dos habitantes daquela terra e ainda mais de seus pais. Foi com surpresa e exaltação que os homens e mulheres que trabalhavam ali, na agricultura, receberam sua inesperada presença. Alguns chegaram mesmo a se curvar perante sua imagem, gesto que Valentina levava com graça e riso. Os anos se passaram e Valentina se tornava ainda mais exuberante que a Lua em seus tempos mais platinados. Aprendeu a dialogar na linguagem popular, a plantar, a colher e a realizar o que era exigido dela.


La Seductora recebeu esse apelido aos dezesseis anos, em um período em que a comunidade prosperava e o alimento não faltava na mesa dos cidadãos. Muitas pessoas que conheceram Valentina, por ela se apaixonaram. Eu fui uma delas, mas o meu caso é diferente e atravessa uma nebulosidade particular entre os mundos que nos dividiam e que, pelo juramento que fiz aos meus semelhantes, jamais revelaria.


A presença censuradora de Dom Miguel foi constante nos seis primeiros anos em que sua filha trabalhou no campo. Ele próprio servia no local e gritava aos homens com barbárie e desprezo. A idade, contudo, já interferia em sua utilidade na plantação e desde então alguns rumores sobre o péssimo estado de sua saúde já circulavam entre as pessoas que se intrigavam com a aparência decrépita de Miguel. E rumores, em alguns casos, tomam forma. A idade, contudo, não foi o motivo do desprendimento do espírito e do corpo. Com ele, junto foi sua calada e atordoada esposa e a morte de ambos demoraria para ser notada no povoado se não fosse pela estranheza com que sucedera.

 

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