Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Parte FINAL)

Imagem coletada no Pixabay

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Após quatro ou cinco gerações no povoado, os que sobreviveram já viam com olhos de desconfiança a beleza de Valentina. Era como se nela os feitiços do tempo e da idade não tivessem efeito. Mas ninguém ousava questionar ou comentar com outrem esse acontecimento. Em verdade, o diálogo se tornou mínimo na comunidade durante a duradoura seca, e todos se viam como inimigos veladamente por conta da luta por alimento, moradia e sexo. Não sabiam, contudo, que todo trabalho, toda resistência por viver, seria em vão. A demoníaca criatura havia crescido e a necessidade de sangue e carne aumentava continuamente. Valentina coexistia com a coisa, eram irmãs, ainda que seja difícil imaginar qualquer dessas afirmações: a criatura exigia alimento, em uma linguagem desconhecida e primitiva, de berros e ruídos que somente Valentina compreendia; Valentina tinha sua vaidade e um dos tentáculos daquela coisa lhe davam a juventude, sugando dela o que houvesse de impureza e deixando-a intacta ao poder implacável do tempo, o que a tornava pecaminosamente atrativa e tentadora, mesmo no vale do silêncio e da escuridão.


O sangrento episódio ocorreu em um só tempo no verão torrencial da vila. Dos mortais, apenas aqueles que tinham menos de dez anos sobreviveram e foi um circo de horrores o que ali se passou. A criatura deslocou quase todo seu corpo da toca em que vivia e o debruçou em solo visível. As histórias sobre os monstros marinhos pareceriam histórias para fazer criança dormir diante daquilo que minha longa existência, até os dias de hoje, não saberia narrar. O pavor causado pelos tentáculos, garras e corpo anelado, se não forem suficientes para o desfalecimento da lógica e do natural, contavam ainda com aqueles sons tensos e aquela pesada respiração da criatura. Ao seu lado, caminhava a contrastante Valentina, em seu vestido vermelho voluptuoso. Mesmo junto com aquilo que para mim é a coisa mais grotesca que já pude ver, La Seductora se destacava e conseguia fazer encantar a visão e entorpecer os demais sentidos. Quando as pessoas do povoado tiveram consciência do que ali ocorria, era mais do que tarde. Nenhuma gota de sangue ou resto de esqueleto foi deixado para trás por aquele monstro que se alimentava emitindo barulhos de horror para os que esperavam o fim. Os bebês e as crianças foram deixados vivos, não por piedade, mas sim para que pudessem procriar em breve e manter existente a população do povoado, de modo que, em alguma noite, aquela apavorante criatura saísse do seu desconhecido paradeiro e voltasse a executar uma nova carnificina.


Imagem de Ryan McGuire por Pixabay

Post scriptum

 

Senhorita Valentina Domênia, ou Tina, como acostumei a chama-la, segue dominando olhares e almas. Não em vossos reinos, mas naquele em que habito. Minha decisão de escrever essa carta para os mortais se deu por um único motivo: mostrar minha gratidão por aquela que me deu tantas almas jovens e graciosas. Por longas décadas pude seguir o ritual de me dirigir ao quarto de minha amada Tina e apenas esperar para ceifar aquele ou aquela que passava do gozo ao horror em tão poucos segundos. Eu sentia um prazer absoluto nessa cerimônia de morte. Um dia eu e você nos conheceremos e, caso se sinta à vontade, tomaremos um chá onde direi alguns dos acalorados momentos que La Seductora tem me proporcionado nessa antes pacata eternidade no vale das sombras. Depois daquele banquete de almas único e inusitado, minha gratidão para ela é infindável.


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