Conto #01: Uma Carta para a Senhorita Valentina Domênia (Parte II)


Essa é uma continuação do Conto #01: antes, leia a Parte I do Conto #01



(...)

Não é de se estranhar que Ximena não aspirava ter tido filha alguma. É bem verdade o que dizem sobre repetições nos ciclos familiares, especialmente entre os mais vulneráveis e privados de alimento. Talvez isso se dê pela precária disponibilidade de alternativas e pela contínua miséria que extermina o artifício do pensamento e remove o interesse em atividades de cunho intelectual. Para os ignorados pela sociedade, o pão não surgirá e nunca surgiu da abstração e dos encantos filosóficos. Assim aprendeu na pele Dom Miguel. E também não se passa por falsa a afirmação de que, naquela época, os adultos, temendo o envelhecimento e a doença, oravam para que alguma divindade lhes desse filhos. De algum modo, qualquer garantia de força de trabalho suplementar era vista como milagre e, a esperança de que algum membro mais novo da família pudesse cuidar dos velhos e decrépitos, era um acalento aos atemorizados indivíduos. Dom Miguel - que de realeza nada tinha para carregar o termo “Dom”, mas exigia que assim o chamassem – obrigava Ximena a manter relações sexuais para que a pobre mulher engravidasse. Ainda que a contragosto, ela não se recusava ao ato, sequer tinha escolha, mas, se enganava adotando a hipocrisia de que vivia um matrimônio feliz. Por distintas ocasiões ela tentou impedir que o feto se desenvolvesse. Quedas, golpes e todos os tipos de ataques foram dados na ausência de Miguel que, por sorte, jamais presenciou essas cenas.


 O parto ocorreu na própria casa, como era costume. A grávida havia se drogado com determinada substância que encontrou no depósito da residência para evitar o momento ou mesmo causar a morte do bebê. Dom Miguel era o único no local e realizou todos os procedimentos, ainda que não soubesse absolutamente nada dos caminhos científicos. Não havia na comunidade qualquer parteira ou meios de fazer a coisa de outro modo. E, ainda que houvesse, eles não possuíam bens para isso.


Um misto de terror com inquietude define como foi o parto. A pouca iluminação da residência não facilitava a aflição do futuro pai e, em certo momento, ele chegou mesmo a realizar a obra na escuridão. O suor e o cansaço para aquele indivíduo que estava acostumado ao árduo trabalho não eram motivos para desânimo mas ele demonstrou diversas vezes insegurança com o que estava fazendo. Do lado de fora da casa, ouviu-se um berro que mais parecia um porco no abate e que rompeu o silêncio na serena madrugada. Então, minutos de quietude novamente tomaram as ruas e as residências mais próximas. Houvera ainda um segundo grito, mais grave e demorado, que pressagiava o horror. A esposa de Dom Miguel não acordara durante todo o trabalho de parto e, se havia ali vida, era por obra divina ou por um conjunto de probabilidades demoníacas que não permitiriam que a nefasta alma abandonasse a dor da existência tão facilmente. Foram necessárias seis horas para que o parto terminasse e ao final de tudo Miguel parecia perplexo, assustado mas, ao mesmo tempo, curioso com o que sucedera.


Valentina de Domênia nasceu em meio a um rigoroso verão em uma época em que a vegetação não prosperava e doenças mazelavam os povos da redondeza. Afável e de temperamento fácil, contrapunha desde o primeiro minuto de existência o clima pesado e de enxofre que pesava naquela minúscula casa. Seus anos iniciais de vida foram um demonstrativo de sua coragem. Desde sua primeira respiração nesse mundo sórdido e corruptível, a mãe de Valentina a ignorou. O primeiro contato visual que estabeleceu com sua criatura foi aos cinco anos e, contrariando todo instinto materno que pudesse indicar alguma preservação do afeto, jamais amamentou a pequenina, tampouco a banhou, cuidou ou mesmo praguejou contra a mesma. Era como se não houvesse ninguém ali. Seu pai mantinha uma preocupação um tanto quanto bizarra e resguardava a cria de todo o mundo externo. Não permitia visitas, ainda que raramente alguém tivesse pensado em visita-los, e trancafiava a filha, durante toda a semana, em um cômodo escuro e sombrio que havia na casa. Sua esposa nunca chegou a perguntar o motivo, e tampouco se importava. Parecia ter abdicado do papel de mãe e havia se fechado ainda mais em seus pensamentos que nunca vieram a público. Evitava qualquer conversação. Não olhava nos olhos. Dom Miguel seguiu com tal prática até os treze anos da menina e era de se estranhar a quantidade de alimentos que levava para ela...


(continuação no dia 16/05)

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